Autoconhecimento tem muitos entendimentos. Vai de uma corriqueira buzzword corporativa até uma soft skill cada vez mais valorizada e requisitada no ambiente de trabalho, seja para indicações, contratações ou efeitos mais sutis – embora não menos importantes – como bem-estar laboral, capacidade de priorizar escolhas, motivação e sentimento de realização.
Que esteja em alta, e valha mesmo ouro, creio que ninguém duvide, mas por onde passa o caminho do autoconhecimento?
Nesse artigo investigo a questão de dentro pra fora e de fora pra dentro :)
Vamos lá?
O PREFIXO 'AUTO'
Antes de mais nada, vale destacar que o prefixo auto na palavra autoconhecimento se refere mais a conhecer a si mesmo do que a se conhecer sozinho.
"Então eu não posso me conhecer sozinho?" Sim, você até pode, mas trarei aqui alguns argumentos de que, na companhia de outra pessoa, irá certamente muito mais longe.
"E me conhecer pesquisando e estudando em livros de psicologia?" Bom, estudar psicologia não é o mesmo que se submeter a um processo terapêutico. Uma analogia possível seria entre um curso de mecânica de automóveis e um outro para se tornar, na prática, um motorista mais responsável e habilidoso.
"Mas só posso me conhecer através de um processo terapêutico com um profissional de psicologia?" Claro que não. Nada detém de fato a hegemonia da promoção de autoconhecimento, o que destaco aqui é apenas o valor da presença de mais de uma pessoa quando falamos desse processo.
OVO COM BATATA FRITA
Talvez você já tenha recebido pelo whatsapp um vídeo em que a palestrante projeta a foto abaixo e provoca a plateia: "Por que a gente vê ovo e batata frita?"
A foto, repare, é na verdade de iogurte, pêssego e maçã.
"Vemos ovo com batata frita porque faz parte da nossa experiência", diz a palestrante. Sim, como já pude observar no artigo Mudança de mindset, nossa percepção se organiza conforme nossa bagagem de fundo.
Trata-se aqui de pareidolia: ver imagens conhecidas em formas aleatórias, tal como seria ver um dragão nas formas de uma nuvem – aqui, no caso, as formas da imagem não são exatamente aleatórias, produzem uma espécie de 'pareidolia pegadinha' entre um prato saudável e outro nem tanto, mas isso não interfere no que irei destacar aqui.
A palestrante continua: "O que pensam sobre você não define quem você é; as pessoas estão te olhando a partir da experiência delas, mas só você sabe o que você traz na essência", conclui.
Uma chuva de aplausos encerra o vídeo. E será que não podemos oferecer qualquer crítica a ele? Algo do tipo: e quem nos garante estar livre dessa projeção 'ovo com batata frita' quando olhamos para nós mesmos? E se vemos um leão onde há um gatinho? Ou vice-versa?
A JANELA DE JOHARI
Os psicólogos norteamericanos Joseph Luft e Harrington Ingham criam, em 1955, uma ferramenta muito perspicaz, batizada através da junção de seus nomes, Jo e Harri: a Janela de Johari.
Dividem-na em quadrantes, combinando em cada um deles os elementos: Eu, Outro, Conhecido e Desconhecido.
–No quadrante Público, um eu conhecido por mim e pelo outro.
–No quadrante Secreto, um eu conhecido por mim e não compartilhado com o outro (quadrante que, em tempos de redes sociais, anda bem pequenininho, rs).
–No quadrante Ponto Cego, um eu desconhecido por mim, mas perceptível aos olhos do outro (ponto que destaco enquanto crítica à metáfora do ovo com batata frita).
–No quadrante Desconhecido, um eu surpreendente para mim e para o outro (ponto em que a Janela de Johari se conecta à perspectiva do inconsciente psicanalítico).
Com base nessa premissa – a da existência de pontos desconhecidos para o próprio indivíduo –, um processo de autoconhecimento que envolva mais de uma pessoa tangibiliza a importância de relações íntimas e feedbacks que possam nos trazer algo para além de nossa orgulhosa pareidolia sobre nós mesmos.
Nessa medida, o caminho do autoconhecimento, aparentemente introspectivo, encontra oxigenação na profundidade das conexões que possamos cultivar uns com os outros.
Isso impõe limites ao self-awareness (autoconsciência), cuja visada é estar presente para observar os próprios comportamentos, reações, escolhas e gatilhos emocionais. Afinal, seria desafiar a lógica pretender observar sozinho pontos que, por definição, restam cegos ao indivíduo.
Cabe salientar, porém, que a função do outro não será exatamente a de esclarecer ou catalogar o conjunto de nossos pontos cegos – uma vez que um catálogo desses viria também recheado das projeções de quem o fizesse.
Na verdade, é comum que feedbacks pareçam 'bater meio de lado', sem nunca acertar em cheio quanto ao que dizem a nosso respeito. Por essa via, mais importante do que questionar se as análises do outro foram fidedignas ou não, é estarmos vulneráveis a tirar benefício do incômodo causado por elas.
O fato é que pontos cegos sempre irão existir – e saber disso, além de nos posicionar a humildade, nos aponta uma dimensão permanentemente incompleta em relação a conhecer a nós mesmos, garantindo aprendizagens e descobertas – não só de falhas, mas também de potenciais latentes – pela vida inteira.
Para esclarecer isso melhor, passemos agora ao exame do termo 'conhecimento'.
CONHECIMENTO DE SI
A palavra 'conhecimento' tem um forte viés científico: seus exames sanguíneos, genéticos, de imagem, enfim, tudo o que pode ser medido ou convertido em dados é conhecimento sobre você.
Embora menos palpáveis, inclua aí também a transmissão cultural que herdamos do lar onde nascemos, da cidade, do país, da geração x ou y em que nos encontramos, enfim, os múltiplos vetores sociais e coletivos que de alguma maneira também nos forjam.
Além deles, nossas características de personalidade, possíveis de se obter através de questionários de autoavaliação ou testes personalógicos, dentre os quais destaco o MBTI (The Myers-Briggs Type Indicator), onde você encontra, entre 16 tipos de personalidade, a que mais delineia a sua – vale a pena experimentar.
Tais levantamentos, inúmeros hoje, podem iluminar nossas características e nos servir como uma espécie de bússola de autoconhecimento, mas é preciso atentar para seu caráter sempre incompleto, bem como tomar cuidado para não acabar criando o que chamarei aqui de uma Fixed ID (Identidade fixa), em referência aos termos criados pela autora de Mindset, Carol Dweck.
FIXED ID vs. GROWTH ID
"Eu nasci assim, eu cresci assim/ Eu sou mesmo assim/ Vou ser sempre assim/ Gabriela, sempre Gabriela", a letra de Dorival Caymmi serve para ilustrar com humor uma tal Síndrome de Gabriela da qual se fala hoje: pessoas que se vangloriam de seu "autoconhecimento" para justificar inflexibilidade ou indisponibilidade em relação a novas experiências, recusando convites ou oportunidades com um categórico "Não, obrigado, eu me conheço".
Longe de querer defender aqui o conto do 'você pode ser o que você quiser, basta querer', é preciso tomar cuidado com os extremos ao avaliarmos o que pode e o que não pode ser modificado em nós.
Se, por um lado, não podemos alterar radicalmente nossas características, por outro, cabe nos mantermos disponíveis para o que há de surpreendente e desconhecido em nós, preservando uma disposição flexível e de crescimento, voltada à ressignificação de nossa própria identidade – uma Growth ID.
DE DENTRO PARA FORA, DE FORA PARA DENTRO
Na animação que ilustra esse artigo, uma pessoa caminha por uma superfície onde dentro e fora estão em continuidade, a Fita de Moebius (diferente de um cinto fechado, onde a superfície de dentro nunca encontra a de fora).
Nesse sentido, é como se o caminho do autoconhecimento não se desenvolvesse apenas num passeio por nossa interioridade, mas através do que a exterioridade lhe revela ou faz emergir com seus atritos.
Se pudéssemos estender os quadrantes da Janela de Johari pela Fita de Moebius, teríamos a impressão de caminhar sobre duas superfícies (a que pisamos, conhecida; a debaixo dela, desconhecida), caminhando na verdade sobre uma só – afinal, somos um só, ainda que marcados por um tipo de autoconhecimento que nunca se revela por completo.
Hoje, assistimos ao fenômeno da data science/analytics que, garimpando o volume imenso de nossos rastros digitais, pode vir a nos conhecer melhor do que nós mesmos – tal como nos adverte Yuval Harari. Isso constitui um motivo a mais para buscarmos autoconhecimento – além das demais soft skills a ele vinculadas, como senso crítico e autoria criativa –, pois certamente quanto menos nos conhecermos, mais alta será a chance de nos tornarmos presas fáceis para as muitas armadilhas de manipulação e distração que virão (e já estão) por aí.
Quanto aos caminhos de promoção de autoconhecimento oferecidos pela psicanálise, creio já tê-los observado em parte nos artigos Repetição e Três elos de um nó – mas a psicanálise é apenas um entre muitos caminhos possíveis. Escolha o seu.
Fica, por fim, apenas o convite para que inclua em sua travessia pessoas capazes de levá-lo além de você mesmo.
Eis o paradoxo do autoconhecimento: é pelo lado de fora que se conhece melhor o de dentro :)
Por Haendel Motta
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