Até um passado recente, autoridades formais, professor, pai, chefe, eram admitidas por consenso, a sociedade era vertical.
Na presente modernidade líquida, assim definida por Bauman, o clima é de crise de autoridade – sociedade horizontal – e professores, pais e chefes têm grande dificuldade para exercer seus papéis.
Com o declínio da autoridade formal, importa hoje a autoridade moral: um outro nome para ela? Liderança.
Contudo, chefia e liderança não são papéis opostos, mas complementares – tema que pretendo aprofundar nesse artigo.
O certo é que, se alguém insiste, hoje, em chefiar apenas, colhe resultados que não ultrapassam o básico.
Se aposta numa rede puramente horizontal, os resultados são demasiado incertos.
Se, por outro lado, é capaz de conciliar chefia e liderança, pode obter resultados surpreendentes.
Consegue, sobretudo, uma resposta à altura do desafio de navegar nesse horizonte líquido de complexidade e incerteza que vivemos.
Chefia versus Liderança?
Oposições entre chefia e liderança estão presentes em inúmeros livros e artigos. Tendem a demonizar o combalido chefe e romancear o indefectível líder.
Nessa pegada, novos modelos de organograma e relações hierárquicas (ou ausência delas) são propostos e experimentados aqui e ali, enquanto em boa parte das empresas e instituições permanecem os tradicionais cargos de chefia ou gerência.
Em muitos deles, contudo, a palavra 'líder' vem no lugar da de 'chefe', como se a mera troca de nome operasse também o salto celebrado nos livros, rs.
Nivelando os termos:
Chefia é cargo por nomeação, concessão de autoridade formal;
Liderança é construção gradual de um laço, de confiança, influência, concessão de autoridade moral.
Um equívoco comum é interpretar que para ser líder você precisa deixar de ser chefe.
Liderar pode ser entendido como ir além da hierarquia, sem necessariamente deixar de se valer dela. Instaurar um laço que convirja em efeitos para além do poder que a autoridade formal confere.
Certo, mas como estabelecer esse laço?
Não basta aplicar ferramentas
Quem aspira liderar faz cursos, compra livros, baixa artigos, bebe em fontes variadas.
Tudo começa com a teoria dos traços, depois dos estilos autocrático a laissez faire, daí o par transacional/transformacional de Burns e Bass; a bela sacada situacional – que fala não só do líder, mas do grau de maturidade dos liderados; o imprescindível Nível 5 de Jim Collins, e além...
A questão é que para instaurar um laço de liderança não basta aplicar ferramentas – vivemos, aliás, uma saturação delas.
É preciso fomentar um posicionamento próprio sobre o que liderar seja – isso libera o gestor para criar caminhos, ao invés de fazê-lo cumprir listas de hábitos, passos, dentre outros modismos corporativos.
Ferramentas não podem ficar descoladas de sua história e repertório de valores.
Do contrário, tudo soa artificial, contradições entre prática e discurso afloram, corroendo a credibilidade/autoridade moral.
Quanto mais sua pele estiver no jogo, mais as pessoas se sentirão seguras para confiar a delas em colaboração.
Em suma até aqui: evite a oposição chefe vs. líder bem como o abismo entre 'minhas crenças aqui' e 'ferramentas de liderança lá'.
E isso não é tudo.
Quanto mais opostos pior
Comum agora em palestras o apelo ao homem primitivo colaborativo, vencendo predadores pelo poder de se organizar em grupos: "Vejam, liderança é isso: criar um ambiente de confiança e segurança como no tempo das cavernas".
Como visto antes, sempre fácil opor o gestor dissonante, que gera ambiente de medo e distanciamento, e o ressonante, que instaura confiança colaborativa.
A armadilha é que, quanto mais opostos, mais difícil esclarecer o como passar de um para o outro.
Ora, lidar com predadores foi fácil perto de vencer a guerra pelo fogo contra a horda vizinha.
O homem rapidamente se torna o lobo do homem; aprende a colaborar, mas também a competir com ardil.
Faz mais sentido, então, apontar vieses dissonantes e ressonantes operando concomitantemente em um mesmo gestor, do que separá-los entre louváveis e execráveis.
Somos seres complexos afinal, e não há dúvida de que também avançamos por força de dissonâncias.
Óbvio que ambiente seguro e confiável importam, mas daí a pintar um passado romântico e convocar a transplantá-lo à complexidade de nossos ambientes de trabalho? Me soa jogo de palco...
Na foto para o perfil, o homem de Neandertal posa de bom moço, rs.
O vetor autoral
A imagem abaixo é de As Aventuras do Barão de Münchhausen, romance de 1785.
Dentre as fugas impossíveis do Barão, essa é a mais famosa: ao se ver afundando num pântano, o Barão salva a si e a seu cavalo puxando os próprios cabelos, desafiando a física e a lógica.
Cena prato cheio para leituras do tipo 'erga-se a si mesmo', 'arranque-se sozinho do buraco'... mas enxerguemos a complexidade do pântano corporativo – e a de nós mesmos – com um pouquinho mais de respeito.
Tire dessa imagem apenas o vetor autoral da liderança.
Exigências externas estão aí para serem cumpridas (nem sempre), mas assumir uma posição de líder envolve deixar um traço pessoal nos resultados, não apenas reagir às circunstâncias.
E falar como autor envolve sustentar suas escolhas apoiado em você: permitir que sua condução se pronuncie, mesmo em meio a um pântano de exigências.
E, claro, sendo capaz de liberar naqueles que te cercam essa mesma potência inventiva e autoral.
Isso costuma ajudar na promoção do laço de liderança que vamos investigando até aqui – bem como a produzir, de modo e-fi-caz, as transformações necessárias para permanecer no jogo hoje em dia.
À sua maneira
Laurent Lapierre, autor que aproxima psicanálise e mundo corporativo, fala do líder extradeterminado, que faz 'tudo direito', à reboque das circunstâncias, em contraponto ao líder intradeterminado, que propõe uma agenda baseada no que acha 'certo fazer', imprimindo aí sua marca pessoal.
Lapierre refuta a crença de que 'boas decisões' ou 'bons resultados' sejam decorrentes da mera aplicação de processos alheios às características individuais do gestor (ok, hoje há o 'data driven', mas ele não resolve tudo).
A questão aqui é: liderar pouco tem a ver com uma imagem extradeterminada de líder. Ao contrário, tem a ver com fazê-lo à sua maneira.
Citando Drucker:
"Um executivo eficaz não tem de ser um líder no sentido em que a palavra é agora mais vulgarmente usada.
Harry Truman não tinha um grama de carisma, contudo encontra-se entre os mais eficazes chefes executivos da história dos EUA.
De modo semelhante, alguns dos melhores diretores executivos com quem trabalhei não eram líderes estereotipados. Eram todos muito diferentes em termos de suas personalidades, atitudes, valores, forças e fraquezas."
Repare que Drucker prefere 'executivo eficaz' a 'líder' – sim, é preciso trazer resultados.
Sem resultados, tudo não passará de romantismo lideracional.
Retroação e líder pré-moldado
Patton, general americano na 2a.Guerra, destacou-se entre seus pares. Bastasse a patente, todos os generais seriam intercambiáveis, mas não, Patton conseguia instaurar um laço cujos efeitos iam além de sua patente.
E talvez não fosse exímio em humanizar o tato, discursar com carisma... enfim, em caber no estereótipo dos manuais de liderança.
O conceito de 'retroação' interessa aqui: pessoas procuram o pulo do gato em biografias consagradas, sem perceber que os resultados de alguém funcionam como um marco que, por retroação, ressignifica alguns passos atrás como determinantes para o sucesso.
Ou seja, seu esforço de hoje só significará 'valeu a pena' ou 'perda de tempo' quando algum marco posterior ressignificá-lo assim. Duro, não?
A partir disso, que tal esvaziar qualquer concepção pré-moldada de líder, uma vez que bons resultados iluminam apenas contextos e características individuais e intransferíveis?
Liderança e Motivação
Liderança e motivação têm conexão direta.
Diante da pressão por resultados, a diferença de alcance do chefe ao líder pode ser descrita assim: enquanto o chefe se vale apenas dos modeladores clássicos do comportamento – recompensa e punição –, o líder, curiosamente, não motiva: abre espaço para que a motivação intrínseca de cada um se manifeste, aproveitando habilidades e talentos e os incentivando a se desenvolver (algo que, atenção: torna necessário se relacionar para conhecer bem a equipe).
Isso traz ganho de significado ao trabalho e faz dele um meio de satisfação em si, não apenas um ambiente estéril à procura de trocas de ordem extrínseca.
Pode parecer clichê, mas há algo de 'regente' no papel de um líder.
Harmonizar talentos diversos em prol de um objetivo comum. Alinhar motivações individuais em torno de suas próprias – as tais 'intradeterminações' que o impelem a se arriscar e pôr a pele em jogo.
Cecília Bergamini diz que:
“A aceitação de um líder será tanto maior quanto mais ele for considerado como facilitador de consecução dos objetivos almejados pelos seus subordinados”.
E como são incríveis alguns dos resultados obtidos através do alinhamento de inúmeros vetores motivacionais em torno de bons líderes.
Entre chefia e manipulação
A história da humanidade pode ser contada a partir do poder de influência de apenas algumas centenas de líderes.
Mexer com os poderes da liderança, porém, equivale a mexer com os poderes do átomo – usinas ou ogivas podem advir.
Temos um apetite formidável pela aparição de um 'grande líder': lembra da corrida de 3 anos de Forrest Gump, capaz de criar do nada um exército de seguidores? A série Messias da Netflix também trata disso muito bem.
Não são poucos os hoje interessados em ‘técnicas de liderança’ à procura de gatilhos para manipulação de rebanhos.
Contudo, instaurar um laço legítimo de liderança requer tempo – só ele revela o que há além da impressão 'inspiradora' que alguém pode vir a causar.
O chefiar apenas (peso nas regras da autoridade formal) desenha um cotidiano mais típico do meio corporativo, já o manipular (peso nos afetos da autoridade moral) é mais frequente em pastorais religiosas ou agremiações partidárias.
De volta ao início: ser capaz de conciliar Chefia e Liderança, autoridades formal e moral – além de, sim, ética – é um caminho para obtenção de resultados surpreendentes.
Algumas sínteses
Por fim, algumas sínteses desse percurso:
Chefia e Liderança não são papéis opostos, mas complementares.
Bons resultados não vêm da mera aplicação de processos alheios às características individuais de alguém.
Liderar é conduzir uma agenda, não apenas reagir às circunstâncias.
Sem resultados, tudo não passará de romantismo lideracional.
Se valer dos motivadores clássicos – recompensa e punição – só gera o básico; permitir que a motivação intrínseca de cada um se manifeste ultrapassa resultados medíocres.
Liderar pouco tem a ver com imagens pré-determinadas de líder. Ao contrário, tem a ver com fazê-lo à sua maneira.
Técnicas de liderança não são truques de manipulação. Se você sai de uma palestra achando que liderar é hipnotizar pessoas, o hipnotizado foi você.
Tanto o chefe quanto o manipulador trabalham para que dependam dele; o líder legítimo trabalha para que não dependam. Ele forma novos líderes.
Quanto mais a sua pele estiver no jogo, mais as pessoas se sentirão seguras para confiar a delas em colaboração à sua orquestração.
A lista acima não substitui a leitura desse artigo, rs.
Espero ter ajudado.
Obrigado por ter lido até aqui :)
Por Haendel Motta
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