Pouca gente sabe, mas o próprio Maslow relativiza 'sua' pirâmide anos mais tarde (na verdade, foi um editor quem decidiu desenhar uma pirâmide).
A cultuada hierarquia das necessidades é proposta, repare como faz tempo, em 1943, no livro “A Theory of Human Motivation”. Hoje, a 'pirâmide de Maslow' também circula numa bem humorada versão 4.0, com wifi e bateria anteriores a qualquer necessidade fisiológica:
Curioso como o modelo original proposto em 1943 orienta de modo tão onipresente o tema da motivação, a despeito das considerações posteriores de Maslow, feitas em 1954. Mais adiante, em 1968, Herzberg publica na Harvard Business Review seu "One more time: how do you motivate employees?", reimpresso em 1987 como o artigo de maior repercussão da HBR até então.
A sacada de Herzberg é mesmo inquietante. Pesquisando motivação por duas décadas em diversos setores, o psicólogo americano apresenta uma dicotomia - fatores higiênicosvs.motivacionais, conhecida como Teoria dos dois fatores - que pode muito bem ser lida como a chave que divide a 'pirâmide de Maslow' em duas.
Fosse mesmo uma escalada única e hierarquizada, seria impossível obter a sensação de realização pessoal antes de estarem resolvidas as muitas necessidades materiais. Mas cenas como as vistas, por exemplo, em hospitais ou escolas, onde a precariedade de recursos contrasta, por vezes, com um alto grau de comprometimento e energia despendido por seus profissionais, atestam a necessidade de uma relativização (se tiver interesse nas considerações posteriores de Maslow, o artigo de Jáder dos Reis Sampaio vai fundo nelas).
Herzberg, por sua vez, separa a motivação em duas vertentes, deixando muito claro o seguinte – e brilhante – raciocínio: fatores que nos tornam insatisfeitos no trabalho podem ser melhorados apenas a ponto de nos deixar sem insatisfações; já uma relação sem satisfação com o trabalho só poderá encontrar satisfação quando a natureza do trabalho em si disser respeito ao sujeito.
Fatores extrínsecos e intrínsecos.
Não restam dúvidas de que fatores extrínsecos insatisfatórios - tais como salário baixo, recursos precários, regras estúpidas ou pouco ágeis, chefias tóxicas ou despreparadas - poderão, em algum momento, acabar minando a motivação intrínseca de qualquer profissional; o que não se pode perder de vista, com Herzberg, é que a tentativa de produzir motivação intrínseca com base na melhoria exclusiva de fatores extrínsecos resultará, frequentemente, em efeitos aquém dos desejados.
Experimente oferecer um bônus polpudo a quem já goza de um bom salário, acreditando gerar com isso mais engajamento em relação a determinado projeto - em geral, você irá conseguir gerar apenas um belo constrangimento. Citando o próprio Herzberg: "Se procuro seduzir alguém para que se mova, quem está motivado sou eu".
Nessa medida, o papel das lideranças não consiste em motivar, mas permitir que a motivação intrínseca dos sujeitos se manifeste; o líder abre passagem para que os talentos e habilidades do sujeito – e para isso irá precisar conhecer bem sua equipe – possam ser aproveitados e incentivados a se desenvolver. Isso produz ganho de sentido ao trabalho e faz dele um meio de satisfação em si – não apenas um ambiente estéril à procura de trocas ou transações de ordem extrínseca.
Em relação específica a salário e satisfação pessoal, é sempre bom ter em vista o artigo de David Myers, The Funds, Friends, and Faith of Happy People, publicado em 2000. Você já deve ter tido notícias dele, através desse gráfico, em algum TED Talk:
O estudo demonstrado por Myers constata que, sim, baixos níveis de renda geram variados tipos de infelicidade; contudo, a partir de determinado patamar financeiro, o aumento do nível de renda não produz qualquer ganho de satisfação pessoal.
Alguma semelhança com a teoria dos dois fatores de Herzberg?
Além de citado no TED de Daniel Kahneman, psicólogo Nobel de Economia, esse estudo de Myers também é exposto no saboroso TED de Mihaly Csikszentmihalyi, que versa sobre a experiência do Flow, estado de 'fluxo' por meio do qual o sujeito se sente inteiramente envolvido em sua atividade laboral (uma vez em flow, a hora voa e você fica irritado por ter que interromper o que está fazendo).
Não há dígito salarial que possa conduzir alguém a esse tipo de estado. A 'moeda de valor' aqui é o flow em si, ou o caminho de desenvolvimento que leva até ele.
E claro que não há como permanecer unicamente em modo flow, pelo contrário: quem quiser provar desse filé, só o fará abraçando também o seu osso; há uma fantasia em nós que constantemente anseia separar o agradável do desagradável, numa espécie de ofício mítico - mas só aqueles capazes de suportar as adversidades de suas escolhas gozarão do prazer desse fluir.
Além do que, não há meios de escolher por ato consciente o ofício no qual 'gostaríamos' de fluir. É preciso se lançar no campo das experiências para checar em que tipo de atividade - sem às vezes nos darmos conta - embarcamos nesse tipo de fruição.
No contexto de mudanças aceleradas da Revolução 4.0, fica a pergunta sobre o real propósito de grande parte daqueles que buscam em suas startups de transformação massiva o tal efeito unicórnio. Quantos não operam ali movidos pela fantasia de enriquecimento exponencial, sem estar advertidos de que mesmo o máximo conforto não é resposta para a satisfação pessoal.
Aqueles não movidos por uma causa que realmente lhes diga respeito, e sim por ganhos externos, tenderão a abandonar o barco nas primeiras dificuldades.
Mas esses são velhos recados que precisam ser constantemente reeditados:
1) quem acredita que pode motivar pessoas parte do pressuposto de que elas devem ser chefiadas, e não lideradas (Bergamini, 1994);
2) mitigar insatisfações ou tentar gratificar, por si só, não faz ninguém trabalhar em 'modo flow';
3) realização pessoal e conforto material avançam em pirâmides distintas.
Quanto a esse último ponto, Jacques Lacan, psicanalista francês, fala da ética da psicanálise enquanto ética voltada para o desejo, isto é, para aquilo que comumente entendemos como busca pela realização de nossas disposições intrínsecas.
A isso Lacan opõe uma ética a serviço dos bens, tipo de busca que procura encontrar nos objetos um tipo de satisfação que nunca se alcança, nunca se completa, e desliza em miragens ideais de conforto e estética, num tédio angustiante que ignora o que seja fluir.
Ficam, para esse contexto de incertezas, as indicações dos autores aqui citados para um modelo de Satisfação 4.0 :)
Por Haendel Motta
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