Era uma vez um planeta onde tudo era inorgânico. Apenas rochas, lava, ventos.
Não se sabe como, mas aconteceu de haver água ali também e, num certo dia, não se sabe como outra vez, algum tipo de calor fez com que certos compostos inorgânicos passassem a orgânicos, em uma tal sopa primordial (caldo de aminoácidos hipotético), que seria o berço da diversidade dos habitantes 'vivos' daquele lugar.
Esses novos seres eram diferentes das rochas, da água e do vento, pois precisavam se alimentar para continuarem vivendo. Alguns fabricavam seu alimento num processo chamado fotossíntese, outros buscavam-no em objetos variados, mas todos necessitavam de algo além deles próprios como fonte de energia para permanecerem vivos.
Esse impulso ao objeto, ou seja, essa busca incessante pelo que há do lado de fora do próprio organismo vivo, irá diferenciar de forma crucial os seres animados dos inanimados.
Outro ponto: esses novos seres morriam (organicamente falando, pois inorganicamente apenas trocavam de forma) e, salvo os capazes de se reproduzir de modo assexuado, o impulso ao objeto era também dirigido ao par sexual, pois só através da prole era possível perpetuar aquele estado de vida que emergiu da complexa sopa primeira.
Agora aceleremos o tempo: as muitas e muitas gerações reproduzidas os diversificam e sofisticam em arquitetura e meios de comunicação, até que mais tarde advém, em apenas uma única espécie dentre todas, um sistema de linguagem apoiado em símbolos lógicos e articuláveis, escrito e falado em línguas variadas, cuja origem, uma vez mais, ninguém sabe como se deu. Citando Yuval Harari, em Sapiens (2011):
O surgimento de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil anos atrás a 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva. O que a causou? Não sabemos ao certo.
E o que isso tem a ver com robôs conscientes?
Pois bem, a declaração do agora ex-engenheiro do Google, Blake Lemoine, de que o emulador de linguagem natural LaMDA havia "adquirido consciência" causou alarde, e, embora não passe de um equívoco, trouxe à baila a necessidade de investigar que tipo de equívocos são esses.
De saída, cabe observar algo que pode parecer óbvio, mas nem tanto: algoritmos operam em instâncias de silício, inorgânicas e, portanto, desprovidas de um tal impulso ao objeto. Caso seja possível abrigar códigos de máquina em uma instância orgânica - como nos sonhos de roteiros como Blade Runner e West World - a conversa poderá ser outra, mas isso por ora não passa de literatura.
É preciso ter em mente que, dentro das possibilidades atuais, chatbots criados para emular uma conversa em linguagem natural são o que se pode chamar de 'stochastic parrots', ou 'papagaios estocáticos'.
Isso significa que escolhem a próxima palavra que irão encadear numa frase com base num estoque gigantesco de sentenças, orientados unicamente por elas, porém sem qualquer notícia do contexto em que estão inseridas - noção de contexto, essa, invariavelmente atrelada a um domicílio orgânico animado.
O que anima a linguagem humana?
Cabe observar que nenhum experimento até hoje foi capaz de reconstruir a sopa primordial, tampouco transformar em organismos vivos compostos inorgânicos. Citando Lacan (1955):
O fenômeno da vida permanece, em sua essência, completamente impenetrável, continua a nos escapar por mais que nos empenhemos.
Assim sendo, a linguagem humana não se encadeia enquanto pura lógica de símbolos passíveis de seres descritos em modelos matemáticos, mas instanciada em um corpo 'vivo', embora pouco saibamos sobre o que esse 'estado de vida' seja.
Sim, a máquina hoje é capaz de gerar, a paritr de trilhões de sentenças estocadas, uma frase gramaticalmente correta e passível de se dizer que 'faça sentido' - embora sejamos nós, seres animados em um contexto de impulso ao objeto, os únicos capazes de validar esse sentido. Citando Jeanne Granon-Lafont, em A topologia de Jacques Lacan (1985):
O desejo é metonímico e corre sob a cadeia de significantes. É somente ele que assegura a coesão dos elementos descontínuos que são as palavras. É para um sujeito desejante que a frase se fecha num sentido.
É, portanto, de um corpo que se trata quando palavras se encadeiam, algo que a máquina estará sempre, de antemão, desprovida.
Para a máquina, a produção de uma frase será tão somente a resultante de uma grande equação. Um truque, tão bem feito que pode parecer para alguns ter sido gerado por um ser não apenas senciente, mas consciente do que diz.
O cachorro da Boston Dynamics é senciente?
Senciente, adjetivo: Capaz de sentir ou perceber através dos sentidos. Que possui ou consegue receber impressões ou sensações.
Não, o cachorro da Boston Dynamics não passa de um emulador de seres sencientes. Não são animados, tal como cachorros de fato, pela matéria orgânica que os constitui, desempenham tão somente um simulacro maquínico dela.
E, no caso humano, o estado de senciência dá um passo a mais, posto que nossa estrutura única de linguagem nos permite um tipo diferenciado de consciência.
Um ser humano pode, por exemplo, escrever uma peça teatral como Hamlet, e através de seu personagem principal refletir sobre a finitude de sua própria existência, algo inimaginável aos demais seres vivos, cujo estado de senciência permanece limitado ao presente.
Além disso, nosso impulso ao objeto, em comparação ao impulso instintivo que fixa o animal em um número determinado de alvos, fragmenta-se em semânticas culturais variadas (vegetarianos, carnívoros, polígamos, celibatários, etc.), premido por uma falta que vai do objeto em si à necessidade de um significado que oriente suas relações com ele.
Enfim, é de um corpo humano que se trata quando palavras se encadeiam, algo que, como já dito, a máquina de antemão não dispõe.
Encerro esse breve e um tanto descontínuo ensaio citando Walt Withman: "Camarada, isso não é um livro. Quem o toca, toca num homem".
Por Haendel Motta
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