Imagem: WUT789, 2022.
Assim como existem várias raças de cães e gatos, várias espécies de laranjas, vários formatos de livros, há características essenciais que nos permitem definir o que é um cão, um gato, uma laranja ou um livro.
O mesmo deveria acontecer com a liderança. Precisamos antes de mais nada, começar a desfazer esse nó.
Uma rápida busca nos livros sobre liderança vendidos na Amazon, trará resultados como estes, listados aqui em ordem alfabética:
Liderança adaptativa
Liderança ágil
Liderança ágil enxuta
Liderança ambidestra
Liderança baseada em evidências
Liderança baseada em pontos fortes
Liderança baseada na confiança
Liderança burocrática
Liderança C-4
Liderança consciente
Liderança democrática
Liderança digital
Liderança energética
Liderança espiritual
Liderança estratégica
Liderança ética
Liderança extraordinária
Liderança H3
Liderança inclusiva
Liderança laisser-faire
Liderança positiva
Liderança primal
Liderança servidora
Liderança total
Liderança transacional
Liderança transformacional
Liderança tribal
Liderança visionária
Não é difícil perceber que ali estão misturados fundamentos (liderança ética, liderança baseada na confiança), processos (liderança transacional, liderança ágil), finalidades (liderança transformacional, liderança estratégica) e estilos (liderança democrática, liderança servidora).
É como se, ao falarmos de cachorros, misturássemos categorias como cães de raça pura / vira-latas (fundamentos), cães farejadores / cães velozes (processos), cães-guias / cães de caça (finalidades), cães agressivos / cães dóceis (estilos).
Falta algo importante aqui: o que todas essas categorias têm em comum? O que é um cão?
O que é liderança?
Até para podermos entender o sentido e a aplicabilidade da liderança, temos antes que compreender a sua essência. Para tanto, a definição que estamos buscando deve obedecer a alguns princípios:
Tem que ser clara e compreensível, sem termos ambíguos nem palavras estranhas ao nosso entendimento comum.
Não pode misturar a essência da liderança com a forma pela qual é exercida, seus processos, ou seus fundamentos.
Tem que ser aplicável aos mais diversos campos de atuação (academia, política, empresas, sociedade civil, e outros mais).
Não pode conter julgamentos de valor (precisa ser neutra quanto ao que é certo, errado, bom, verdadeiro, eficaz).
Tem que ser o núcleo comum a partir do qual definições especializadas possam ser construídas sem prejuízo do significado original.
Uma proposta de definição de liderança
Liderança é a competência de mobilizar pessoas e/ou organizações
para que mudem a forma de pensar e agir, visando a superação
de desafios complexos.
Se ética ou antiética, ágil ou educativa, estratégica ou operacional, democrática ou manipuladora – tudo isso cabe no espaço da nossa definição.
Entre os líderes na história da humanidade há médicos e monstros, e alguns outros sobre os quais até hoje não existe e talvez nunca venha a existir um veredito consensual.
Dependendo da perspectiva de cada um – nacionalidade, posição política, princípios, cultura, e assim por diante – o julgamento pode variar, e variar muito. E isso não significa que sejam ou deixam de ser líderes.
Vamos então examinar cada um dos elementos da nossa definição essencial.
Competência é a vontade e a capacidade de sintonizar o comportamento com as exigências da situação.
Pense num atleta de primeiro nível, como Usain Bolt. Nas provas eliminatórias, ele sabia exatamente o tempo que precisava obter para estar nas melhores raias na hora da final e, por isso, conseguia calibrar o desempenho para conservar a energia sem correr riscos. Quando a medalha estava em jogo (e durante três olimpíadas seguidas ele conseguiu ouro em três provas diferentes), Bolt não poupava esforços e buscava sempre a superação.
O nome disso é competência. A soma da vontade com a capacidade. Mesmo que quiséssemos agir assim, não teríamos a capacidade. E possivelmente há atletas que poderiam até ter batido Bolt em seu auge, porém careciam da disciplina, energia e foco para manter a rotina de treinos, controlar a alimentação, superar a dor e evitar distrações. Faltava a vontade.
Um líder menos competente, segundo o nosso conceito, talvez escolhesse enfrentar um desafio além da sua capacidade (como se Usain Bolt resolvesse correr uma maratona). Ou ignorasse o tamanho do comprometimento e do sacrifício envolvidos no desafio escolhido. Ou imaginasse que bastaria repetir a performance habitual para vencer o desafio (como se correr os 42km da maratona fosse o mesmo que enfileirar 420 provas de 100 metros rasos).
Portanto, como o exemplo de Usain Bolt demonstra, a competência combina alguns fatores inatos e outros adquiridos com atitudes bastante especiais.
Se grande ou pequena, o grau em que a liderança existe não afeta a definição, apenas a sua efetividade.
Mobilizar é o motor da liderança, pois “mobilizar” significa tirar da zona de conforto, produzir o incômodo que conduz à ação coordenada.
O termo liderar vem do inglês e do alemão arcaico, sempre com o sentido de guiar, ir antes ou à frente, mostrar o caminho, fazer com que nos sigam.
Liderar implica gerar movimento; sair de onde estamos, e ir a outro lugar. Cada líder tem seu estilo, sua forma de persuadir e convencer as pessoas a que se movam. Jim Jones usou o fanatismo e a paranoia para levar ao suicídio centenas de cidadãos americanos numa comunidade religiosa da Guiana; o sociólogo Betinho tentou sensibilizar a população brasileira para o problema da fome apelando para valores humanos básicos (Natal sem Fome).
Os dois caminhos geram apoios e resistências, mas produzem mobilização.
A maneira como o líder mobiliza as pessoas e/ou organizações não altera a definição de liderança.
Pessoas e/ou organizações nos lembra que o exercício da liderança envolve a colaboração. Não existe liderança no vácuo, nem auto liderança, embora haja quem tente nos vender a ideia de que podemos nos dividir em dois: um “eu” que lidera e outro “eu” que é liderado. Os psiquiatras adoram ....
E líder é uma qualificação que outros atribuem a nós, e não um elogio que fazemos a nós mesmos diante do espelho. O objeto da liderança é sempre externo a nós.
Sem construir com as pessoas um propósito comum percebido como desejável ou necessário, inexiste liderança.
Só quem pode mudar a forma de pensar e agir são pessoas. Entretanto, quando pertencem a uma organização ou exercem influência forte sobre elas, algumas dessas pessoas serão capazes de mudar também, indiretamente, o comportamento das organizações.
Mudar a forma de pensar e agir é a razão de ser da liderança.
Convencer as mulheres a fazerem exames preventivos de câncer de mama todos os anos, e os homens a fazerem exames preventivos de próstata, é um belo exemplo.
Com certeza algumas pessoas do Ministério da Saúde e da sociedade civil perceberam a urgência e conseguiram mobilizar outras pessoas e organizações para que, aos poucos, compreendêssemos e aderíssemos à importância dos exames.
Mas mudar pensamento não basta. Se não consigo induzir os outros a agir de uma nova maneira, mesmo que estejam totalmente convencidos do valor dos meus argumentos, não posso dizer que esteja exercendo liderança.
A ação pode tomar formas diretas como empunhar armas, dar a cara a tapa, desenvolver uma região, ou reposicionar uma empresa; e também indiretas, como absorver e difundir as propostas do líder, defendendo-as onde o líder não consegue chegar, e levando mais pessoas a seguirem com ele.
Desafios complexos são aqueles que surgem da interação entre diferenças: trabalho e família; uma geração e a geração seguinte; desenvolvimento econômico e meio ambiente; tecnologia e convivência; egoísmo e altruísmo. Os exemplos são inúmeros. Desafios complexos nos obrigam a aceitar que interagimos com interesses ao mesmo tempo complementares e antagônicos.
Abrimos mão de muita coisa para liderar, e aceitamos um grau de exposição excepcional, em troca de realização pessoal, status social e crescimento profissional.
Levamos benefícios aos outros, mas esperamos reconhecimento.
Demonstramos insatisfação com a situação atual, mas sabemos que o mundo não começou conosco, mas não temos alternativa senão construir a mudança a partir dos sucessos e fracassos de quem nos antecedeu.
Queremos garantir saldos comerciais crescentes em nossa balança externa, mas isso pressupõe explorar o território, e se essa exploração ultrapassar certos limites seremos punidos através de barreiras comerciais.
Numa democracia, queremos que nosso partido vença as eleições, mas reconhecemos que, caso se torne hegemônico, a democracia será extinta.
Num campeonato esportivo, queremos ganhar sempre, mas aceitamos que se isso acontecer deixará de haver campeonato.
Esta é a natureza dos desafios complexos, nos quais causas e consequências se misturam, não temos como planejar com segurança, e devemos estar sempre preparados para surpresas agradáveis e desagradáveis.
Por Fernando Ximenes
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Abordaremos sobre Liderança durante esse mês, trazendo para reflexão um dos artigos de Fernando Ximenes. E você que nos lê, está convidado a deixar aqui sua opinião e eventuais dúvidas.
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É o #CEUcomVoce.
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