LIDERANÇA-OBJETO, LÍDER-SUJEITO
Quem aspira liderar faz cursos, compra livros, baixa artigos, bebe em fontes variadas.
Tudo começa com a Teoria dos Traços, depois dos Estilos autocrático a laissez faire, daí o par Transacional/ Transformacional de Burns e Bass, adiante a "sacada" Situacional (que fala não só do líder, mas do grau de maturidade dos liderados), depois o Nível 5 de Collins, o pipeline de Charan, e quem não adora o Golden Circle de Sinek?
Mas liderança não é fonte em que se molha apenas a cabeça (compreensão 'intelectual', digamos). Não é um app que você instala ao lado de outros no seu repertório de frases e atitudes prontas.
É preciso entrar na água com o corpo inteiro, água gelada, e sua skin in the game: você a pratica com seu bodyware - e vê todo seu sistema operacional se modificar.
Não basta se valer de um objeto, se vestir de. É preciso estar lá como um autor, de olho nos livros, mas em contato com a autenticidade do sujeito que você é.
Vivemos hoje um esgotamento do objeto-ferramenta, das leadership tools.
Apenas enquanto sujeitos, ali estaremos inteiros. Responsavelmente inteiros, assumindo consequências de nossas palavras e atos. Assim leio o último presente de Taleb (o livro Skin in the game).
VIA DE PÔR, VIA DE RETIRAR
Via de pôr: você lê, você assiste - do lugar de plateia -, e quanto mais recebe, mais amplia sua bagagem de conhecimento. Via do objeto-ferramenta, portanto.
Via de retirar: você escreve, você fala - do lugar de autor -, e quanto mais se pronuncia, mais lapida e sintetiza seu repertório. Via do sujeito.
É Freud quem, citando Leonardo da Vinci, toma como exemplo a pintura, 'via de pôr' tinta sobre a tela, em comparação à escultura, 'via de retirar' lascas da pedra.
A psicanálise não se resume a mera lapidação, mas opera pela via de retirar, nos diz Freud.
Via não exclusiva da psicanálise: já experimentou compor algo - início, meio e fim - sobre tema que mergulha à fundo, há anos? Arquitetar em trinta minutos uma fala sobre algo a que se dedica desde...? Submeteu a alguém de sua confiança, antes de apressada publicação, esse trabalho, que lhe foi devolvido sangrando: rabiscado, picotado, altere aquilo, refaça isso...
Nada mais formador.
Portanto não fie-se apenas na via de pôr. Se submeta com ousadia à experiências que lhe tirem lascas. Cicatrizes e sínteses.
Sim, já lembrou de Jobs: "a simplicidade é a máxima sofisticação" - mas a frase é de da Vinci!
Então alterne pôr e retirar, abasteça seu repertório e desvele seu estilo. E não deixe nunca de submeter seu trabalho a alguém de confiança, dizendo: "Desculpe a carta tão longa, é que não tive tempo de torná-la menor".
COACH e ANTICOACH
Não cabe o brado radical "coaching é farsa". Há certamente gente experiente, responsável, respeitável nesse serviço.
Sou psicólogo clínico de orientação psicanalítica, com mais de 15 anos de estrada - serviço dito 'de saúde', cuja promessa não é propriamente uma alavancagem pessoal de A até B.
Preocupa-me pressupor que o sujeito saiba, de antemão, onde deseja chegar.
Me explico. Vejam na medicina, o sujeito sofre de insônia e solicita uma pílula que o leve até B: dormir em paz.
Pode, com isso, pretender bypassar sentimentos importantes - os que lhe causam a falta de sono.
Prefiro, pela via psicanalítica, não levá-lo tão depressa a esse B de sono profundo (via de pôr); ao contrário, cutuco seus demônios para que acordem (via de retirar).
Vem um coachee em busca de "crescimento profissional" - e se o ajudo a cimentar seus sentimentos através de uma miragem de sucesso? Promover 'autoconhecimento de habilidades' para que se esquive de seus pesadelos?
Por que fragilizar o sujeito, lhe dando os objetos-ferramenta que me pede, se posso antifragilizá-lo, arrancado lascas de seu pedido?
Sim, faço referência aqui ao livro de Taleb, Antifrágil - decididamente psicanalítico.
Ao invés de B, a psicanálise conduz até onde nem ele nem eu sabemos de antemão. E algo de valor ocorre nessa travessia.
MAN + MACHINE
A fala da presidente da IBM, Ginni Rometty, faz pensar.
As máquinas estão aí, tornaram-se uma extensão de nós: relacionamentos, empregos, mobilidade, educação, saúde... múltiplos campos humanos se alterando em ritmo exponencial, traduzindo a força-impacto do atual estado tecnológico (ainda raiando).
Mas nossa relação com a tecnologia não é de hoje. Freud viveu o boom dos transportes, viajar entre países de trem ou navio foi para ele o que é para nós o boom das telecomunicações. Em 1930, ele escreve "O mal-estar na civilização", e nos diz algo assim: criamos trens e navios e agora sofremos com a ansiedade por notícias dos familiares que embarcamos neles. Em suma: cada avanço tecnológico resolve um problema e cria outros. Esse é o mal-estar de que fala Freud. Tratamentos para vício em celular atualizam isso.
De modo que, um casamento feliz man+machine não pode pressupor que o segundo guarde, em si, a chave para os problemas do primeiro. Criar 'soluções' baseadas apenas em objetos (sejam trens, antes, ou produtos IoT, hoje) é fomentar casamentos infelizes.
Claro que podemos nos valer das ferramentas-tech, mas com o cuidado de transmitir - sobretudo para as crianças - que é no humano que se encontra a chave de cada batalha.
Dito isso, o casamento tem tudo para dar certo.
Por Haendel Motta
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